Capítulo 1 - O mal nasce dentro de nós

Primeira lição:

"Às vezes tendemos para o mal,
mas ele não pode de repente surgir em nós.
Ou o temos ou jamais o teremos
a não ser que sejamos diferentes
que tenhamos o poder."

    Foi então que eu lembrei. 
    Lembrei-me do pior momento da minha vida.
    O demônio me salvou. Ou por precisar de mim ou por eu ter o dom.
    Se até hoje eu não descobri, é porque ainda não chegou a hora.
    Espero ardosamente por esse momento. Quero saber o que me fez sobreviver aquele acidente terrível. Eu renasci do fogo, literalmente, e até hoje, dez anos depois do ocorrido, nada aconteceu.
    Mas eu sei que sou diferente, que Desirée também é diferente, que precisamos nos apoiar, nos mantermos juntas.
    É por isso que temos essa ligação. Se não fosse por ela, eu hoje jamais saberia quem quis que eu sobrevivesse. Eu antes pensava que fosse um milagre, mas milagres só acontecem com os bons.
    Sou Cecília, nasci com o mal em mim. Não posso tirá-lo por livre e espontânea vontade, nem ele pode ser tirado de mim por vontade dos outros.
    Agora que Desirée revelou seus poderes, eu os sinto me atingirem de uma maneira estrondosa. Isso é bom, de uma maneira eu sinto que é, mas isso também significa que os segredos vão começar a serem revelados.

    Segui em direção a cantina, trêmula e nervosa. Eu novamente tive aquele pesadelo. Não conseguia acreditar no que acabara de sonhar. De novo estou sendo atormentada pelas minhas sombras do passado.
    Já fazia um tempo que eu não pensava neles, no que aconteceu, mas foi só a voz voltar a assoprar em minha mente que tudo voltou junto a ela.
    Adentrei no local já lotado. As mesas abafadas com tantos sons, vozes, risos e gargalhadas. Avistei Bernardo e Desirée que estavam sentados com uma cadeira vaga entre os dois.
    Eles se odiavam, mas se permitiam ficar juntos sem um motivo aparente.
    Sentei-me na cadeira entre os dois. Uma bandeja com um copo de leite e um pote com cereal ao lado estavam dispostos a minha frente.
    - Peguei pra você - resmungou Bernardo enquanto levava uma maçã já meia mordida à boca.
    - Obrigada - agradeci, envergonhada.
    É certo que Bernardo tem seus momentos. Ele é muito contraditório e incerto. Às vezes eu até me assusto com ele. Tem dias que ele está tão distante e outros que está mais caridoso, amigável. Isso foi a uns dois anos atrás, pois antes disso, Bernardo era sempre o Bernardo bondoso, agora ele sempre se altera.
    - Vão para a educação física hoje? - pergunto tentando criar um assunto. Eu queria tirar logo aquelas lembranças da minha cabeça. Toda hora elas voltavam a martelar e eu simplesmente queria afastá-las de novo, como eu sempre faço.
    Eu sei que está difícil de controlar os seus sonhos, Cecília, mas está chegando a hora, não tem como escapar, você sabe disso...
    A voz, cada vez mais íntima, cada vez mais perigosa, reveladora.
    - Eu nunca vou... - respondeu-me Bernardo tirando-me da minha súbita falta de atenção. - você sabe. - terminou ele logo após mordiscar sua maçã.
    - Eu vou ter que ir... - assumiu Desirée, apoiando a cabeça sobre a mão com o cotovelo apoiado na mesa. - já que eu não falto as aulas como o Bernardo.
    Ela o olhou desafiadoramente.
    - Não vou nem falar nada... - Bernardo cruza os braços a frente do corpo e se encosta na cadeira, deixando os restos da base da maçã em cima de sua bandeja.
    Eu enfio uma colherada de cereal na boca. Eu sabia que novamente viria uma das brigas diárias entre eles.
    - Quem cala, consente, Bernardo... - Desirée falou entre dentes enquanto se aproximava dele, apoiando-se acima da bandeja do meu café da manhã.
    - E quem confessa que vai forçado, também não quer ir - Bernardo continuou a instigando.
    - Mas pelo menos eu vou! - berrou Desirée aproximando-se ainda mais de Bernardo por cima da minha bandeja.
     Eu só olhei em seus olhos e ao vê-los vermelhos, afastei-a imediatamente empurrando-a para sua cadeira com a minha mão direita, segurando forte em seu tórax. Ela imediatamente arfou por ar.
     Quando olhei para minha mão, ela estava vermelha e quente, o que me fez sentir um formigamento.
     - Chega, por favor... - disse enquanto ainda encarava minha mão avermelhada e dolorida.
     Bernardo, que estava a minha direita, voltou a ficar ereto e sem as costas apoiadas no encosto da cadeira, enquanto Desirée, que estava a minha esquerda, se encostava agora em seu assento.
     Era um dilema afastá-los e terminar com todas as suas brigas principalmente agora que os poderes de Desirée se afloraram, não sendo controlados quando ela fica com raiva.
     Após a primeira discussão do dia entre Bernardo e Desirée - mas não a única - seguimos calados em direção ao outro prédio, até a sala de aula.
     Como em toda segunda-feira, os outros alunos encontravam-se no mesmo estado que o nosso: cansados, sonolentos e calados.
     O sonho voltou. Ele continuou constante, repetindo-se sem cessar inúmeras vezes. O fogo, as labaredas, as estacas de madeira caindo do teto.
     Eu já estava acostumando-me a ele. Ou eu o aceitava, afinal, aconteceu mesmo e eu teria que encará-lo algum dia, ou eu o ignorava até ele desaparecer novamente, como ocorreu durante esses dez anos.
     Entramos na sala de aula e a professora de história já estava sentada em sua cadeira, com seu material acima da mesa e seu sorriso falso.
    Seguimos para nossas determinadas carteiras. Eu me sentava ao lado de Bernardo e os assentos eram duplos, então dividíamos a mesma mesa, a não ser em época de provas, que íamos para outra sala.
    Desirée se sentou a nossa frente, como sempre, ao lado de Patrícia.
    - Bom dia, classe, como foi o fim de semana de vocês? - perguntou a professora Magalhães levantando-se da cadeira e seguindo em direção a porta para fechá-la.
    Ela era jovem e deveria odiar ter que viver presa a um instituto durante nove meses por ano. Mas ela não tem o que reclamar, deve ser muito bem paga.
    Seus cabelos eram loiros e sempre estavam presos em um coque feito com um lápis. Seus olhos delineados e marcados realçavam a cor e o brilho intenso de âmbar. Usava sempre saias que fossem até os joelhos ou um pouco abaixo deles, mas sempre coladas ao corpo. Blazer azul marinho por cima de uma camisa branca de botões e salto alto preto.
    - Como os de toda semana de provas... sem festas e sem acesso a internet - repudiou Desirée enquanto cruzava os braços a frente do corpo.
    Desirée só estudava na São Tomé desde o ano passado. Acostumada a vida fora de cá, ela sempre imaginou que conseguiria tudo que podia, mas infelizmente não foi isso que aconteceu. Vivia arriscando-se para conseguir sinal da internet ou fazer uma festa para descontrair.
    Foi com o nosso encontro que nossa ligação floresceu. Foi com nosso encontro que nossas vidas começaram a mudar intensamente.
    Eu descobri coisas que pensei que não existissem e ela conseguiu a realização de descobrir seus poderes.
    Eu nunca fui acostumada a acessar a internet nem assistir televisão, mas isso eram coisas de rotina da vida de Desirée e eu entendo que ela sinta falta disso.
    Como eu entrei com sete anos, acabei me acostumando rapidamente e nem me lembro direito.
    Claro que podemos ter computador, rádio e televisão no quarto, mas geralmente não temos.
    Só podemos acessar os computadores da biblioteca para pesquisas escolares, entretanto, muitos alunos já são acostumados a pesquisar nos bons e clássicos livros, como eu e Bernardo.
    - Que bom pra você, Desirée, pelo menos é mais um incentivo para você estudar para a minha prova de quarta, não? - disse a senhora Magalhães, desafiando Desirée, como sempre, enquanto se sentava na mesa e cruzava as pernas, apoiando as mãos nos joelhos.
    - É claro, professora! - exclamou Desirée logo virando-se para trás e me encarando com os olhos arregalados.
   A professora sorriu e levantou-se da mesa, seguindo em direção ao quadro de giz e começando a riscar alguns fatos sobre a segunda guerra mundial.
   - Eu tinha me esquecido da prova! - sussurra Desirée para mim.
   - Normal, Desirée - sorri e olhei para Bernardo, logo depois voltando a olhar para ela. - Aposto que Bernardo te ajudará.
   - Eu não... - por um momento eu pensei que o Bernardo seria ele mesmo, mas me enganei, novamente ele negou algo a ela. Tudo bem que eles nunca se deram bem, mas eu sentia falta do Bernardo bondoso ao extremo. - O que eu ganharia com isso?
    - O prazer da minha companhia na próxima festa? - perguntou ela já duvidando do concordamento de Bernardo.
    - Não, Desirée, isso seria fácil demais, eu quero é grana.
    - Sempre, Bernardo... sempre - Ela então virou-se para a frente de novo e começou a anotar as coisas que estavam sendo escritas no quadro.
    Eu comecei a rir enquanto anotava também a matéria pensando no óbvio. Eu tenho dois melhores amigos que se odeiam e querem tudo fácil demais.

    Finalmente o sinal do almoço tocou. Eu e Desirée saímos da sala de braços entrelaçados e seguimos direto para o banheiro deixando Bernardo conversando com o Francisco, o Cássio e a Paola, provavelmente sobre as provas da semana.
    - Gênios viciados em estudar... - falou Desirée ao atravessarmos o pátio indo em direção ao banheiro do prédio da cantina.
    - Não reclame tanto, ele até que te ajuda quando você precisa - a disse desentrelaçando meu braço do dela para pegar meu cabelo e colocá-lo todo para apenas um lado, apoiado sobre meu ombro.
    - Por dinheiro, né, Cecília - esclareceu-me ela. - Se ele realmente fosse bom, não pediria nada em troca, só faria.
    Fiquei pensando sobre aquilo e lembrando do Bernardo de antes... As pessoas mudam, eu tenho que me acostumar com isso. Bernardo mudou, não é mais o mesmo com o qual eu costumava correr pelos campos do Instituto. Ele não é mais a mesma pessoa, ele não é mais aquela criança fofa dos cabelos lisos invejáveis.
    Ao chegarmos a porta do banheiro, nos encontramos com as gêmeas Lívia e Lídia, que estavam saindo.
    - Era só o que me faltava! - disse Desirée ao cruzar os braços a frente do corpo e estufar os peitos.
    Nós tínhamos uma grande lista negra na escola - eu adquiri a maioria após a entrada de Desirée na escola  - mas as gêmeas Lívia e Lídia estavam no topo.
    Com os poderes de Desirée florescidos, eu tinha que me preocupar com ela e protegê-la além de meus esforços.
    - Meninas... - Lívia sorriu ironicamente e deu uma piscadela. - Vão para a educação física hoje de noite?
    A encaro boquiaberta enquanto tento entender o motivo de ser sua inimiga. Eu estudo com elas a mais de cinco anos e antes nem nos falávamos.
    Desirée me fez conhecer muita gente e odiar mais ainda, mesmo sem saber o motivo.
    - Sim, nós vamos, para tacar bastante bolas nas caras tortas de vocês - soltou Desirée enquanto descruzava os braços e estalava os dedos das mãos, esticando os braços, aproximando suas mãos do rosto de Lívia, para que ela pudesse ouvir os estalos.
    - Tem que haver um jeito de consertá-las - a completei temendo o pior. Elas não são literalmente más, mas quando querem podem ser bem próximas disso, criando boatos e espalhando calúnias sobre nós.
    - Mas e o mau humor de vocês? Só os anti-depressivos que pode curá-los, não é mesmo? - bradejou Lívia com sua irmã, Lídia, escondendo-se atrás dela, também temendo o pior.
    Parecia que Lídia também sabia do que Desirée era capaz.
    - Só cura com isso aqui - de repente Desirée estava com as mãos em torno do pescoço de Lívia após me empurrar para o lado.
    Elas adentraram no banheiro feminino e Lídia estava aterrorizada com as mãos a frente da boca próxima as pias.
    Entrei no banheiro e segui correndo em direção a Desirée que estava sufocando Lívia contra a parede. Ela já nem conseguia mais encostar os pés no chão.
    - Com a sua morte - pronunciou Desirée com a voz rouca e estranha.
    De alguma forma eu não era completamente domada pelo mal. Isso era realmente estranho. Não importava o quanto elas nos incomodavam, eu não as desejava o mal, de jeito algum.
    - Chega, Desirée, por favor, chega! - exclamei puxando-a pelos ombros para longe de Lívia, que agora já conseguia encostar os pés no chão, mas só as pontas.
    Minhas mãos ardiam mas eu continuava puxando Desirée para longe dela. Eu não queria que seus poderes se atiçassem, eu não podia deixá-los se atiçarem.
    - Acho que ela já aprendeu a lição... - disse arfando de dor nas mãos. Elas estavam queimadas, vi assim que as afastei de Desirée a vendo largar o pescoço de Lívia. Ela também deve ter sentido seu pescoço quente, mas espero que não pense que fora por causas sobrenaturais.
    - Que lição? - perguntou Lídia sendo sonsa, querendo provocar Desirée que estava lavando as mãos na pia soando e respirando fundo para tentar se controlar.
    Lívia estava respirando fundo também, mas não para se controlar e sim para recuperar o fôlego. Ela estava com as mãos nos joelhos para se segurar em pé e com as costas na parede e a cabeça para cima, com os olhos fechados enquanto lacrimejavam.
    Talvez com medo, cansaço... ela tinha razão em estar com medo, assim seria melhor para ela. Se manter longe de Desirée é melhor, a não ser que você seja como ela, o que é o meu caso.
    - Você entendeu, elas nos querem longe delas... - falou Lívia ainda sem abrir os olhos para encarar a irmã inescrupulosa. - acham que temos medo delas...
    - E deveriam ter... - disse Desirée lavando o rosto e me encarando no espelho, vendo-me pelo reflexo.
    Eu sorri, não pude evitar. Era bom ter essa ligação com alguém, é bom saber que não sou a única diferente.
    É bom poder confiar em alguém.
    Lívia se levantou, olhou para a irmã e indicou a porta para ela. Quando Lídia abriu elas saíram e foram para a cantina.
    Aproximei-me de Desirée e a vi lavar os pulsos.
    - Ei, chega... - disse encarando suas mãos. Saía fumaça a medida que ela as molhava, ainda deveriam estar fervendo.
    - Eu só quero que isso pare...
    - Eu sei, mas para isso não adianta só molhá-las, você tem é que se acalmar - apoiei minha mão sobre seu ombro e cravei meus dedos para não tirá-la de relance por sua pele estar a queimando ainda mais, mesmo que através do tecido do uniforme do colégio.
    - É difícil me controlar e cada vez fica mais perigoso - disse ela virando-se para mim após fechar a torneira.
    Eu finalmente tirei a mão de seu ombro e a vi cheia de marcas vermelhas.
    - Desculpa.
    - Tudo bem, eu tenho que sofrer as consequências - dei um meio sorriso e a encarei com remorso. Seus olhos são verdes claros, como verde piscina, e seus cabelos são vinho.
    Ela tinha uma beleza misteriosa, eu gostava disso nela.
    - Vamos para o almoço - digo já me virando para a porta, a abrindo.
    Ao chegarmos na cantina, avistamos Bernardo com duas cadeiras vagas a sua esquerda, tendo como companhia Patrícia e Francisco, sentados a sua frente. De manhã, na hora do café, nossa mesa estava vazia, só tendo nós três.
    - Vou buscar nossos almoços, vai se sentando - avisou-me Desirée logo depois seguindo para a fila.
    Segui até nossos lugares e sentei-me ao lado de Bernardo, deixando a cadeira vaga ao meu lado para ela.
    Ela não demorou muito e logo depois apareceu com duas bandejas. Se sentou ao meu lado e largou as bandejas na mesa.
    - Hoje é dia de espinafre, infelizmente... - repudiou ela logo depois fazendo uma cara engraçada por estar com nojo.
    - Eca... - também reclamei e logo depois sorri. Era saudável ter uma amizade tão fraternal com alguém, a qual desfrutássemos os mesmos gostos e as mesmas características.
 
     As outras três aulas foram tranquilas. A prova de matemática, como sempre, foi difícil, mas nada impossível, a não ser para Desirée, que ficou o domingo inteiro tentando achar sinal da internet para refazer exercícios resolvidos de faculdades ao invés de estudar apenas pelos exercícios do caderno ou pesquisar em livros da biblioteca.
    Assim que o último sinal tocou, seguimos para a biblioteca, eu, Desirée e Bernardo para estudarmos para a prova de português e fazermos os deveres de casa.
    Desirée detestava fazer os dois, então logo pegou seu celular na bolsa e começou a mexer nele a caminho da biblioteca. Seus pais disseram a ela que a deixariam utilizar o celular apenas para pesquisas escolares, mas ela nunca cumpriu com esse acordo, sempre se arriscando para trocar mensagens com seus amigos de fora da escola.
    - , copia os deveres de casa para mim? - pergunto com voz melosa para Bernardo, que estava com aquela cara bruta de sempre e com o moletom o deixando parecer bem mais gordo do que realmente era.
    Ele sempre usou moletons, sempre. Às vezes com alguma estampa xadrez na frente mas sempre de manga comprida que encobria tudo.
    Os cabelos negros bem penteados para o lado e com gel, para manter-se na posição. Os olhos azuis extremamente brilhantes, transmitindo frieza para todos que olhasse. E ele olhou para mim naquele exato momento, deixando-me derretida. Já era acostumada com seu olhar, com tudo nele. Dez anos de convivência nos fazem conhecer bem nossos aliados. Bernardo poderia ter os olhos mais azuis e mais frios que conheço, mas jamais me assustavam e se algum dia conseguissem fazer isso, não seria mais o Bernardo.
    - Não - resmungou ele enquanto segurava firme a alça da mochila que cruzavam seu peito.
    - Por favor, eu estou muito ruim em gramática e ainda tenho que ir para a educação física, pois...
    - Tá bom - disse ele sério, sem me deixar terminar meus argumentos.
    - Bê, copia os meus também? - pediu Desirée tentando me imitar. Ela não tinha dado nem um pio até agora entretida com seu celular.
    - Para você não, você nem vai pegar no livro de gramática.

    Eu fiquei refazendo alguns exercícios enquanto Bernardo estava fazendo os deveres de casa no seu livro e copiando-os depois no meu caderno. Desirée estava na internet pelo celular, fazendo algo diferente de pesquisas escolares, desregrando o que seus pais haviam combinado com ela.
    - Vamos, Desirée? - perguntei alguns minutos depois de fechar o livro e ficar encarando-a teclar rapidamente o celular.
     Ela sibilou algo enquanto se levantava da cadeira ainda teclando sem parar o teclado do telefone.
     - Vai ficar, Bernardo? - pergunto enquanto me levanto também.
     - Tenho que estudar mais um pouco... - diz ele com a cara no livro lendo rapidamente cada frase.
     - Ok, nós vamos indo então... me entregue meu caderno amanhã - disse pegando minha mochila e a colocando em meu ombro. Ele estava todo atarefado, refazendo alguns deveres. - Até.
    Saímos de lá e seguimos para o dormitório feminino, não muito longe dali. Desirée tinha dado apenas algumas olhadas no livro, como ela sempre faz.
     Entrei correndo no dormitório e segui em direção ao banheiro no final do corredor. Tomei um banho rápido e voltei para o meu quarto, para trocar de roupa.
    Reparei que Alice, minha companheira de quarto, estava estudando também bastante para a prova de amanhã, mas isso não era de se estranhar, a maioria dos alunos da escola já eram acostumados com isso pois sempre estudaram em escolas internas, onde somos subordinados a estudar e seguir regras sempre.
    - Vai para a educação física hoje? - perguntei enquanto estava sentada na minha cama colocando as meias nos meus pés.
    - Acho que sim... - disse ela, espreguiçando-se após largar o livro ao seu lado. Seus cabelos loiros estavam soltos e seus olhos azuis mareados de sono. - Que horas são?
    - Cinco e meia - digo pegando minha mochila em cima da cadeira a frente da minha escrivaninha e sentando novamente para ver sua resposta.
     - Já? - pergunta ela, surpresa. - Então esquece... eu não vou não.
     Ela se deitou na cama, com a mão apoiando a têmpora e com o cotovelo na almofada.
     Ela tinha uma certa bondade pairando em torno de si, acredito que devido a beleza angelical.

     A educação física seria lotada naquele dia. Estávamos nas últimas semanas do período, então as pessoas queriam se recompor pelo que perderam durante todo o bimestre.
     Lívia e Lídia estavam conversando com alguns garotos, como sempre. Só que dessa vez elas estavam com Cássio e Francisco, provavelmente pedindo - em troca de algo - para eles darem cola na prova de amanhã para elas.
    Na São Tomé é assim: ou você é muito inteligente e batalha para conseguir as coisas, - os subordinados - ou você é também inteligente, mas não luta muito pelas coisas - os subordinadores.
     E elas com certeza faziam parte das subordinadoras, que sempre queriam tudo fácil, assim como Desirée.
     De repente a vi correndo vindo do prédio dos dormitórios femininos com sua bolsa de um ombro só quase a enforcando devido a velocidade em que ela corria.
     Sentei-me na escadaria de uma das saídas da quadra e fiquei a esperando chegar. Apoiei meu rosto sobre uma das palmas das mãos e o cotovelo sobre um de meus joelhos. Era um tédio as aulas de educação física, mas eu vinha por obrigação. Se não me importasse tanto com elas, como Bernardo, acho que também faltaria todas.
     - Oi... - disse ela aproximando-se de mim após cruzar toda a quadra, de uma porta a outra. Ela inspirou forte puxando o ar para seus pulmões.
     Na quadra haviam quatro portas, uma em cada lado. Ela era retangular e o teto era arredondado e bem distante do chão.
     - Por que você sempre se atrasa? - pergunto sorrindo enquanto levanto minha face e a encaro, cruzando os braços a frente do meu peito.
     -  Sei lá... - Ela disse pensativa enquanto olhava para onde o professor estava. Longe, sorrindo, conversando com alguns alunos a sua volta. Bem distraído e nada disposto a dar aula. - Só não corro para me arrumar como você...
     - Pelo menos meu banho vale a pena ser tomado, já o seu... não vejo mais o efeito, você está toda suada... - sorrio enquanto vejo ela ficar com uma cara engraçada, de quem não gostou da piada.
     Ela continuou parada na minha frente enquanto não percebia que Lívia aproximava-se de nós chegando por trás dela.
     - Saibam que... - Desirée logo virou para trás e começou a encarar Lívia, cruzando os braços. - Não tem cara de ser montagem.
     Desirée virou-se para mim e voltou a encarar Lívia imediatamente. Nem eu nem ela entendemos.
     - Do que você está falando, Lívia? Daquele boato que você e sua irmã espalharam? - perguntou Desirée em tom insinuoso enquanto cruzava as braços.
     - Não, isso é passado. Estou falando de algumas fotos que estão rolando agora, de você e Cecília roubando alguns relatórios da secretaria.
     Assim que ela terminou a frase eu me levantei estupefata com o novo boato. Já falaram muitas coisas sobre nós que não gostamos mas achar mesmo que chegaríamos a roubar algo da escola era passar dos limites. Isso nos levaria a uma expulsão na hora. Se elas contassem algo e eu fosse expulsa, só me restaria o orfanato.
     - Isso é mentira, Lívia, você sabe disso... - Estava me orgulhando de ver Desirée tentando se segurar antes de partir para uma briga.
     - O vídeo me parecia bem verdadeiro... Adoraria ver a cara da diretora quando soubesse que você, Cecília, estava roubando e alterando os resultados do simulado.
     - Cala a sua boca, sua farsante! - desci os degraus enfurecida. A raiva tomou conta de mim e quem me acalmou desse vez foi Desirée que ao me ver chegar ao seu lado me olhou com os olhos lípidos.
     - Dessa vez não fomos nós! - defendeu-se Lívia, se referindo a sua irmã também.
     Desirée fechou os olhos e dirigiu sua cabeça para o chão e quando os abriu pude vê-los brilharem vermelhos. Ela voltou a encarar Lívia após levantar sua cabeça, que se aterrorizou ao ver os olhos de Desirée vermelhos e levou a mão a boca.
     - Já te avisei para parar de nos provocar - a voz de Desirée estava rouca novamente. - Agora você sofrerá as consequências.
     Nesse momento, nesse exato momento, resolvi tocar seu ombro como tinha feito no banheiro, mas dessa vez não deu para aguentar, seu corpo estava muito mais quente do que minha mão, já queimada, suportaria.
     A afastei imediatamente enquanto via que suas mãos começaram a soltar faíscas.
     Era estranho, surreal, mas realmente estava acontecendo. Desirée iria pegar fogo.
     Após isso só me lembro dela colocar as duas mãos a frente do corpo com os braços esticados, apontá-las para o chão e simplesmente soltar fogo por elas. O brado do professor para evacuarem a quadra, pessoas correndo assustadas e gritando enquanto uma camada de fumaça tomava conta do local.
     Não vi mais Desirée, não vi mais Lívia, não vi mais nada nem ninguém. Eu caí no chão, bati com a cabeça e de repente tudo ficou preto.
     Eu desmaiei.